Piquenique na Estrada


Por Felipe Leonel

Eu já falei aqui no blog sobre o longa “STALKER” (1979), obra seminal do cinema e um dos filmes de ficção científica mais fora da caixinha que Andrei Tarkovsky poderia produzir. Nele, cheguei a comentar em algum momento que o filme é uma adaptação de um livro, um material literário russo-soviético. Sim, soviético mesmo, já que seu lançamento foi feito ainda no período da URSS, em 1972, elemento esse que não necessariamente se reflete na trama, mas tem um tanto haver.

Bom, “Piquenique na Estrada” (Пикник на обочине, na língua original ou Roadside Picnic, nem inglês) é um romance de ficção científica com foco em temas filosóficos profundos e que aborda de forma pertinente a natureza da humanidade, alienação, isolamento, moralidade e até mesmo conceitos de tempo e espaço, dados os elementos alienígenas apresentados na trama. 

Escrito a quatro mãos e entre família, “Piquenique na Estrada” foi pensado, desenvolvido e efetivamente escrito pelos irmãos Arkady e Boris Strugatsky ao longo do ano de 1971 e publicado já em 1972.  Ao longo dos anos, o livro serviu como inspiração pra uma série de produtos em diferentes mídias. E além de sua adaptação cinematográfica propriamente dita, ou seja, “STALKER”, a obra também influenciou peças teatrais, videogames e séries televisivas. 

Entre as obras mais famosas e inspiradas diretamente no livro estão, obviamente, o filme de Tarkovski que, mesmo sendo uma adaptação direta, é vagamente baseado no romance, e o game “S.T.A.L.K.E.R.: Shadow of Chernobyl” (2007), primeiro capítulo de uma franquia que mistura, com excelência e maestria (caramba, esse jogo é muito bom!), diversos elementos do livro com algumas das ideias apresentadas no filme.

E a palavra “stalker", usada nos títulos tanto do filme quanto dos jogos, não é à toa. O termo se tornou parte da língua russa ainda na década anterior do lançamento do livro e, segundo os próprios autores, virou um neologismo bastante popular e que acabou entrando no livro exemplificando um tipo de função muito específica exercida por alguns personagens na trama. Mas logo eu chego nessa parte da história.

Ambientação de uma Zona mutável

“Piquenique na Estrada” se passa durante um período pós evento extraterrestre, onde a data exata não é especificada, chamado aqui de “visitação”, um momento em que ocorre simultaneamente visitas alienígenas no planeta em várias localizações ao redor da Terra e durante um período de dois dias. 

Essas visitações, ainda que bastante claras e de conhecimento geral, acabam não sendo efetivamente vistas pelos humanos, assim como seus visitantes ou mesmo meios de chegada ou partida. Porém, tais visitas são sugeridas como "acidentais" por alguns cientistas, como se esses aliens tivessem apenas parado por aqui pra descansar (daí a referência ao nome livro, um piquenique à beira de uma estrada). 

Durante essa parada, os aliens, acabam esquecendo, ou mesmo, deixando propositadamente alguns de seus itens em diferentes locais do globo, itens esses que acabam alterando o ambiente ao redor e criando, a partir daí, seis “Zonas” distintas. Essas Zonas exibem fenômenos estranhos e perigosos não compreendidos pelos humanos, assim como uma série de acontecimentos inexplicáveis e estranhos que ocorreram de maneira bastante breve.

Essas seis Zonas são totalmente isoladas e vigiadas constantemente, porém, a trama se concentra especificamente em apenas uma delas, localizada na cidade fictícia de Harmont, onde vive o protagonista da história, Redrick Schuhart, um stalker com a função de invadir a área proibida pra roubar quaisquer que sejam os artefatos extraterrestres que estiverem por ali e, após o roubo, vendê-los. 

Antecedentes de uma estrada espacial 

"Piquenique na Estrada” se desenvolve ao longo de oito anos em torno de Redrick, cuja vida se entrelaça com as intrigas e perigos atrelados à Zona. Ele enfrenta dilemas éticos ao colaborar em expedições oficiais que resultam em tragédias enquanto, paralelamente, sua vida é marcada pela paternidade iminente junto a sua namorada, e futura esposa, enfrentando os medos e incertezas sobre o futuro de sua família em meio a um ambiente instável.

Conforme a trama se intensifica com a descoberta de que os artefatos são cobiçados não apenas por seu valor científico, mas também por interesses militares ocultos, Redrick se vê envolvido em transações clandestinas que o colocam em conflito direto com autoridades e forças obscuras que buscam controlar ou explorar os segredos das Zonas pra ganhos pessoais e até mesmo geopolíticos.

À medida que a história avança, revelações sobre a natureza da Zona e seus efeitos sobre as pessoas, incluindo a filha peculiar de Redrick, o levam a confrontar suas próprias escolhas, assim como o significado de sua busca pela "Esfera Dourada", um artefato lendário que promete realizar qualquer desejo. Em um ato final de salvação, a jornada do protagonista culmina em um sacrifício e reflexão sobre o destino da humanidade em um mundo transformado por forças além do entendimento humano.

Reflexões de um piquenique alienígena 

Em essência, "Piquenique na Estrada” não apenas explora os mistérios e perigos das Zonas, e dos riscos que a visitação trouxe ao planeta, mas também questiona as consequências morais e existenciais das ambições humanas diante do desconhecido e do incontrolável provocando, de diversas maneiras, reflexões sobre o que é certo e errado em circunstâncias extraordinárias.

De certa forma, o livro também consegue criar uma relação com nossa própria realidade, na forma como os temas abordados refletem sobre os desafios e dilemas que enfrentamos como sociedade moderna. Exemplo, Stalkers arriscam suas vidas pra coletar e vender artefatos roubados da Zona, em certo ponto, essa ação reflete uma dinâmica de exploração e lucro que ressoa com questões contemporâneas de capitalismo que vivemos diariamente.

Outro ponto interessante, enquanto estão dentro da Zona em exploração, os Stalkers frequentemente se sentem alienados e isolados, não apenas fisicamente, mas também emocionalmente trazendo questionamentos profundos sobre como devemos lidar com a sensação de desconexão e isolamento em nossas próprias vidas.

Além das claras influências do contexto científico e tecnológico da época, da Guerra Fria, do desenvolvimento da corrida espacial e da ideia de um encontro com uma civilização alienígena e das preocupações que isso poderia trazer, a tradição literária russo-soviética de contar histórias profundas, sempre com temas sociais e filosóficos, também ajudou os Strugatsky na criação de seu livro.

E mesmo que a trama se desenrole em um país distante, é possível observar algumas inserções críticas na obra, principalmente políticas, onde a Zona pode ser interpretada como uma metáfora pros aspectos da sociedade soviética e como o próprio isolamento e confinamento do país criam um ambiente similar ao de uma Zona.

Claro, sem o contexto político exato daquele momento, ou seja, sem saber o que foi, como nasceu e como se deu a queda da União Soviética, alguns elementos acabam se perdendo na compreensão final, mas, ainda assim, a reflexão sobre o desconhecido, o estranho e o impacto das escolhas humanas em um contexto extraordinário pode ser entendida facilmente.

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