Perfect Blue (1997)

Por Felipe Leonel
Um dos filmes de animação mais impactantes, importantes e influentes do cinema japonês — e também um dos mais discutidos quando o assunto é identidade, mídia e obsessão – "Perfect Blue", brinca com a linha ténue entre o real e o imaginário de forma bastante inquietante dentro de uma narrativa fragmentada de forma proposital fazendo com que o público se perca junto com a protagonista e a todas as suas inquietações e crises mentais.
A transição e a fragmentação de uma Idle
"Perfect Blue" acompanha Mima Kirigoe, uma jovem cantora pop (uma Idol de um grupo chamado CHAM!) que decide abandonar a carreira musical para se tornar atriz. Mas essa transição acaba não sendo fácil. Enfrentando pressões da indústria e conflitos internos, Mima começa a perder a noção de quem realmente é.
A partir do momento em que assume papéis mais ousados, a jovem atriz começa a ser perseguida por um fã obcecado e a realidade de Mima passa a se fragmentar cada dia mais, colocando a mente da personagem em uma espiral de alucinações, paranóia e dupla identidade.
Dirigido por Satoshi Kon, sua estreia como diretor de longas, "Perfect Blue" (Pāfekuto Burū / パーフェクトブルー) apresenta uma trama cheia de suspense psicológico, thriller de perseguição e drama adolescente. Chegou aos cinemas japoneses em 1997 trazendo como uma espécie de base conceitual para o roteiro o romance "Perfect Blue: Complete Metamorphosis", de Yoshikazu Takeuchi.

Entre o thriller psicológico e o cinema de Kon
"Perfect Blue" é um filme profundamente original, mas foi moldado por influências das mais variadas, dentre elas literárias, cinematográficas e culturais, tanto ocidentais quanto japonesas.
Entre suas principais influências, está o romance "Perfect Blue: Complete Metamorphosis", escrito por Yoshikazu Takeuchi, lançado originalmente em 1991, e de onde o filme é inspirado livremente mantendo só a ideia central de uma ídolo pop sendo perseguida. O tom do livro também difere do filme, sendo mais um thriller policial do que a escolha de longa focado no psicológico e no existencial.
Além do livro, uma série de filmes, muitos deles ocidentais, e especialmente os thrillers psicológicos, ajudaram o longa a ganhar corpo, como "Vestida para Matar" e "Dublê de Corpo" (Brian De Palma, 1981 e 1984), "Psicose" e "Janela Indiscreta" (Alfred Hitchcock, 1960 e 1954), e "Repulsa ao Sexo" e "O Bebê de Rosemary" (Roman Polanski, 1965 e 1968).
Cada um dos filmes apresenta diferentes características que seriam usadas por toda a trama de "Perfect Blue", presentes de forma intensa tanto nos acontecimentos ao redor da personagem principal quanto em sua própria psique. Identidade confusa, sensualidade distorcida, estrutura fragmentada, uma protagonista que se isola e perde a noção da realidade são alguns dos elementos que brincam com o ponto de vista do espectador
Dentre as influências culturais, a indústria da música pop japonesa e o mundo dos ídolos (ou das/dos Idols) é apresentado por toda a trama com críticas diretas a essa indústria, onde jovens artistas (principalmente mulheres) são moldadas como produtos perfeitos mostrando a transição da protagonista de uma "ídolo pura" para "atriz adulta" — algo que, no Japão, frequentemente gera rejeição dos fãs, que idealizam uma imagem imaculada dessas figuras.

Construindo o caos
Outras obras anteriores de Satoshi também serviram não só como experiência de criação, mas também como influência para a produção do longa animado, já que Kon já era conhecido por explorar realidades sobrepostas e identidades partidas em seus mangás, como Toriko (1984) e em animes como Roujin Z (1991) — escrito por Katsuhiro Otomo (Akira) — onde trabalhou como animador, e também como cenografista do filme.
E até mesmo posteriormente em outros trabalhos ao lado de Otomo, como "Magnetic Rose", primeiro segmento do longa “Memories” (1995), que teve roteiro, design de fundo e layout do diretor, suas ideias e estética se tornaram muito mais refinadas, como "Millennium Actress" (2001) e "Paprika" (2006).
Estética essa que em "Perfect Blue" já começa a ficar bastante clara. Do Techno-noir dos anos 1980 ao surrealismo japonês, a ambientação urbana, os tons escuros e a iluminação são pontos chave no longa que ajudam a situar (ou deslocar) a protagonista naquela realidade apresentada.
O uso de elementos surrealistas — como o “duplo” de Mima ou a confusão entre gravação e realidade — são mostrados de forma bem presente e propositalmente confusa alternando entre tons suaves e cenas altamente perturbadoras.

Identidade, imagem e controle
"Perfect Blue" é um filme denso, cheio de camadas e simbolismos — e é justamente isso que o torna tão marcante. O longa animado trata de temas psicológicos e sociais que, mesmo sendo um filme dos anos 1990, atualmente já com 28 anos, sua trama se mantém bastante atual.
Identidade fragmentada e crise existencial são dois dos temas centrais do filme, sendo a desconstrução da identidade da protagonista a mais discutida. À medida que tenta deixar de ser uma Idol para se tornar atriz, Mima passa por um processo de autodescoberta que se transforma em confusão e colapso psicológico.
Questionamentos internos de quem é a verdadeira Mima, qual a imagem que o público enxerga da personagem, assim como aquilo que ela mesma vê refletido de si própria na internet gera uma confusão entre quais são as versões reais da protagonista e até mesmo se existe uma versão real dela.
Esse aspecto de distorção da realidade é posicionado de forma estratégica no roteiro para que o espectador, junto com a protagonista, não sejam capazes de distinguir o que é real de fato, se todos a duplicata é apenas um sonho ou delírio. Para isso, o diretor usa cortes bruscos e cenas espelhadas para embaralhar os limites entre cada uma dessas esferas, forçando o público a experimentar a mesma desorientação da personagem.
E ao longo de seu processo de transição de carreira, Mima é pressionada a abandonar sua imagem "pura" de Idol para aceitar papéis mais ousados envolvendo violência, nudez, cenas de estupro fictício. É nesse ponto que o longa mostra como o entretenimento explora e molda artistas, especialmente mulheres.
Ao longo de sua trama, o filme também mostra ser um comentário sobre como o público consome a intimidade dos outros, no caso, dos famosos. Esse comentário é apresentado na figura do fã obcecado que vigia Mima representando o lado mais doentio da relação entre uma celebridade e sua audiência.

As sombras de Perfect Blue em outras telas
Desde seu lançamento, "Perfect Blue" formou uma penca de fãs por todo o mundo e seu estilo acabou influenciando cineastas importantes e grandes dentro de Hollywood. Entre os longas descaradamente influenciados pela animação, "Réquiem para um Sonho" (2000) e "Cisne Negro" (2010) estão, possivelmente, em primeiro lugar.
Ambos dirigidos por Darren Aronofsky, em Réquiem, o diretor recria uma das cenas mais icônicas da animação (a do banho) e ainda traz uma linguagem visual muito semelhante. Em Cisne, a protagonista também sofre fragmentação de identidade, pressão extrema para performar e vê um “duplo” de si mesma.
Além da obras de Aronofsky, outras com temas semelhantes e que também podem (ou não) ter sido diretamente influenciadas pelo trabalho de Satoshi são, "Mulholland Drive" (David Lynch, 2001), Cam (Daniel Goldhaber, 2018), "The Machinist" (Brad Anderson, 2004) e "I'm Thinking of Ending Things" (Charlie Kaufman, 2020) que também lidam com a desconstrução da identidade criando ilusões e realidades misturadas, além de uma sensação de alienação da realidade e autoquestionamento.

O legado de Perfect Blue no imaginário
Dá pra dizer com toda a certeza que Perfect Blue não só redefiniu os limites da animação japonesa, como também se consolidou como uma obra-prima atemporal do suspense psicológico. A maneira que Satoshi Kon manipula a percepção do espectador, embaralha realidade e ilusão, e coloca a mídia, a fama e a identidade sob um microscópio cruel, revela uma compreensão profunda das angústias tanto da protagonista quanto do próprio espectador.
E mesmo depois de quase trinta anos, esse filme permanece atual, inquietante, além de super necessário na lista de melhores filmes de qualquer pessoa. Perfect Blue é capaz de provocar discussões que seguem ecoando no cinema, na cultura pop e, porque não, até mesmo nos debates sobre saúde mental e representação feminina.
No fechar das cortinas, o longa não entrega respostas tão fáceis — e essa talvez seja sua maior força. Perfect Blue exige do público mais do que atenção, pede também envolvimento, desconforto e questionamento. É uma obra que não se consome passivamente, mas que se infiltra e permanece no imaginário por anos.
E se Mima passa o filme tentando descobrir quem é de verdade, o espectador sai dessa experiência com uma pergunta parecida: até que ponto somos donos da nossa própria imagem?

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