Blade Runner (1982)
Por Felipe Leonel
Entre as distopias mais famosas do cinema, entre as sci-fis mais características e cheias originalidade, “Blade Runner”, de 1982 se destaca por sua inventividade e questionamentos sobre a natureza da consciência e daquilo que se pode chamar de ser humano enquanto aborda, dentro desse mesmo espectro, temas como identidade, humanidade e moralidade.
Falando de forma geral sobre o longa, seu roteiro consegue trazer a tona algumas das principais temáticas filosóficas contornando a identidade humana através de seus replicantes e de como seus próprios desejos e vontades são relegados a apenas falsos sonhos criados e implantados artificialmente em suas mentes.
Tudo isso, claro, tem uma origem bem definida, o livro que deu origem ao longa chamado "Do Androids Dream of Electric Sheep?" escrito por Philip K. Dick e lançado em 1968. Em grande maioria, os elementos que compõem a trama de “Blade Runner” já se faziam presentes na versão escrita, mas que acabou ganhando uma ampliação até mais significativa durante a construção do roteiro.
Essa ampliação se dá principalmente pela mudança na origem dos “vilões” da história. No livro, são andróides construídos para se parecer nos mais diferentes aspectos. Já no filme, são seres biológicos modificados para serem ainda mais fortes, inteligentes e resistentes que os humanos, mas nunca sendo considerados efetivamente humanos, “mais humanos que os próprios humanos”.
Além disso, o longa também é conhecido por seu trabalho visual inovador, definido por um design sombrio que combina elementos do noir clássico com uma estética futurista, se tornando uma referência importante a partir dali para o gênero, e também de todo um movimento que, não muito depois, viria a ser conhecido como cyberpunk.
A história de Blade Runner
Dirigido por Ridley Scott, "Blade Runner" se passa em uma Los Angeles distópica no ano de 2019, onde uma humanidade abastada fugiu para colônias distantes (em outros planetas) deixando aqueles sem as melhores condições em uma Terra devastada. Ao mesmo tempo, esses mesmo rejeitados convivem com Replicantes, seres similares aos humanos e bioengenheirados pela poderosa Tyrell Corporation, e que são criados exclusivamente para servir.
Dentre os Replicantes que trabalham nas colônias fora do planeta, suas presenças na Terra são proibidas. Mas quando alguns desses seres escapam de seus respectivos campos de trabalho forçado e acabam voltando à Terra, é papel dos "blade runners" capturar "aposentar" cara uma deles (um eufemismo para dizer que serão mortos).
A trama do longa gira em torno de Rick Deckard, um agente especializado em caçar e "aposentar" replicantes (geneticamente criados para ter uma vida útil de apenas quatro anos). Após um motim em uma das colônias, um grupo de quatro replicantes da série Nexus-6, liderados por Roy Batty retorna à Terra em busca de encontrar seu criador na tentativa de prolongar suas vidas.
Deckard é convocado para eliminá-los e, durante sua investigação, o detetive acaba se deparando com Rachael, uma replicante experimental que não sabe de sua real origem e que acaba se envolvendo emocionalmente com ela ao mesmo tempo que desafia suas percepções sobre humanidade e empatia sobre quem são, de fato, os seres que caça.
Conforme Deckard rastreia os replicantes, também enfrenta dilemas éticos e confrontos físicos com Batty, que, em seus momentos finais, salva a vida do blade runner trazendo a tona reflexões sobre a fragilidade da existência e a inevitabilidade da morte com um monólogo icônico: "Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.”
Natureza, criação e artificialidade em Blade Runner
Como apresentado no longa, os replicantes são seres artificialmente criados, ainda que biologicamente semelhantes aos humanos. No filme, os modelos mais avançados representados pelo grupo do antagonista Roy Batty, a geração Nexus-6, são quase indistinguíveis dos humanos.
A presença dos replicantes dessa geração ajudam a criar na trama uma noção de que a biologia não é o único critério para determinar a humanidade, sugerindo que empatia, memória e autoconsciência também são elementos essenciais para definir o que é ser humano. Memória e identidade pessoal são explorados de forma bastante presente ao longo da história, apresentando essa ideia nas memórias implantadas que os replicantes recebem e que dão uma falsa sensação de história e de si mesmos.
Essa exploração ajuda a levantar questões entre os personagem sobre o quanto nossa identidade é construída pelas nossas memórias e o que acontece quando essas mesmas memórias são, na verdade, apenas artificiais. Ou seja, se nossas memórias podem ser criadas ou manipuladas, até que ponto podemos confiar em nossa própria identidade?
Entre as principais características psicológicas dos Replicantes, enquanto seres relutantes e temendo sua própria morte, é de que, inicialmente, os modelos Nexus-6 seriam programados para não desenvolver emoções, mas muitos deles começam a apresentar sinais de sentimentos humanos, como medo, amor e empatia, especialmente à medida que se aproximam do final de suas vidas, trazendo seus principais dilemas e seu desejo de encontrar o próprio criador na tentativa de expandir seu tempo de vida.
Parte desse dilema acaba sendo representado também em Deckard que, inicialmente vê os Replicantes apenas como um trabalho que precisa ser aposentado. Sua visão começa a mudar à medida que ele interage com Rachael, uma Replicante experimental criada por Tyrell. Rachael não apenas desconhece sua verdadeira natureza, também projetada com memórias implantadas, o que a torna emocionalmente vulnerável.
Essa revelação desafia a compreensão do detetive ainda mais, já que Rachael não é apenas um "objeto" ou "máquina", mas sim alguém capaz de amar, sofrer e questionar sua existência, da mesma forma que ele próprio. Sua relação com ela o força a humanizar os Replicantes, colocando em xeque a moralidade de seu trabalho. Sua conexão romântica que desenvolve com ela simboliza sua transformação de executor frio para alguém que enxerga as cópias humanas como indivíduos reais.
Em algumas das versões do filme, identidade e a própria humanidade o protagonista (inclusa a versão final de 2007) são colocadas em jogo quando a ideia de que Deckard poderia ser ele mesmo um replicante. Essa possibilidade torna seus dilemas ainda mais profundos. Essa possibilidade acaba sendo deixada de lado na continuação, Blade Runner 2049, tomando espaço para outros dilemas relacionados às possibilidades de um replicante poder gerar vida por si só.
No elenco principal de “Blade Runner” estão, Harrison Ford como Rick Deckard, o protagonista e blade runner, Rutger Hauer como Roy Batty, Sean Young como Rachel e Edward James Olmos como Gaff, outro blade runner com uma ligação estranha com o protagonista.
As origens de um clássico cult do cinema
Com roteiro inicialmente desenvolvido por Hampton Fancher em cima do próprio livro servindo como argumento, a adaptação cinematográfica originalmente focava mais na filosofia e menos na ação, mas o estúdio queria algo mais comercial e o roteirista David Webb Peoples foi trazido para fazer alterações introduzindo cenas de luta, de perseguição e outros momentos de confronto mais físico o que acabou moldando o filme de forma muito mais próxima ao que conhecemos hoje..
Peoples também foi responsável pela mudança no conceito de Android para Replicante. A palavra "replicante" foi trazida para a trama como uma nova maneira de descrever os antagonistas da história e também como uma forma de fugir de algo mais clichê, como “robô”. A inspiração veio diretamente dos livros de biologia do roteirista, onde “replicação” é um termo usado para a duplicação de material genético.
Outra diferença em relação ao livro foi a mudança no nome da produção. Com a mudança, o título "Blade Runner" acabou sendo emprestado de um outro livro, “Blade Runner: A Movie” escrito por William S. Burroughs e que, por sua vez, teve seu título também emprestado do romance chamado “The Bladerunner”, já esse, escrito por Alan E. Nourse. Nas três obras, o termo blade runner é usado para definir ou mesmo referenciar de formas diferentes cada um de seus personagens principais.
No caso de seu diretor, Ridley Scott, o convite inicial para a direção do longa foi rejeitado por Scott devido a um momento de luto em que passava devido à morte de seu irmão Frank Scott. Ainda assim, acabou aceitando uma nova oferta para o projeto logo após deixar a produção do filme “Duna” como forma de ocupar sua mente e trabalhar em algo diferente do que havia feito até então.
Um dos maiores destaques do filme, e uma das ideias mais inovadoras do cinema, é o visual neo-noir e cyberpunk apresentado por todo o longa. Influenciado fortemente pelo trabalho de Fritz Lang em seu filme "Metropolis" (1927) e também no traço do ilustrador Jean Giraud/Moebius, a estética de Blade Runner é marcada por uma mistura de culturas que incluem elementos ocidentais e asiáticos e ainda que também refletem uma visão distópica daquele mundo.
O autor do material original, Philip K. Dick, estava inicialmente cético em relação à adaptação, mas depois de ver alguns minutos da filmagem, ficou impressionado com a fidelidade à sua visão. Infelizmente, Dick faleceu pouco antes do lançamento do filme e nunca viu a versão final.
Uma ficção científica maior que sua próprias ambições
Após seu lançamento, "Blade Runner" acabou se tornando um dos precursores da estética cyberpunk, influenciando filmes, jogos, literatura e até mesmo a moda ao longo dos anos, e não somente em seu período de lançamento, mas até hoje. Sua representação de um futuro distópico, onde a linha entre humanos e máquinas é indistinta, também continua sendo explorada em várias formas de mídia.
Mas mesmo com sua influência precursora e inovadora, o filme não foi bem recebido pelos críticos e teve baixa venda de ingressos, batendo pouca arrecadação nas bilheterias. Muito disso acabou sendo a edição final do longa com mudanças controversas solicitadas por executivos do estúdio. Entre elas, uma série de narrações em off explicando a trama e um final feliz destoante de todo o restante da trama. Mesmo com a resposta negativa, sua trilha sonora, composta por Vangelis, chegou a ser indicada em 1982 ao BAFTA e ao Globo de Ouro de melhor trilha sonora original.
O longa chegou a retornar aos cinemas no final dos anos 1980 com um corte diferente, e já com um certo status cult, mas ainda assim com diversos problemas em sua narrativa. Com o tempo, o longa também chegou a ser lançado em VHS e home vídeo criando, até o momento, sete versões diferentes de Blade Runner.
Uma versão do diretor foi lançada em 1992 após uma forte resposta às prévias de um workprint do longa, isso, junto com a popularidade do longa como locação de vídeo, o que fez dele um dos primeiros filmes lançados no formato. Em 2007, a Warner Bros. lançou "The Final Cut", uma versão remasterizada digitalmente em comemoração ao 25º aniversário do longa e a única versão a qual Scott manteve controle artístico utilizando cenas deletadas até então e um corte totalmente diferente.
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