Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?
Por Felipe Leonel
Antecipando uma série de elementos presentes atualmente nas mais diferentes obras scif-fi, seja na própria literatura, como na TV ou mesmo no cinema, “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” (Do Androids Dream of Electric Sheep?) consegue, ao mesmo tempo, extrapolar o conceito de tecnologia e ainda incluir em sua narrativa outros fatores que mexem com a psique humana, como por exemplo, a questão fundamental da obra “O que é ser humano de verdade?”.
Uma mistura bem elaborada e também bastante surtada de uma visão de futuro distópico, com dilemas existenciais e problemas praticamente absurdos que permeiam o que se pode chamar aqui de ‘ambiente de trabalho’, o livro trata de forma bastante séria temáticas como empatia, identidade e o sentido da vida em meio a um cenário caótico e cheio de dúvidas sobre o que é de fato viver e estar vivo.
Lançado em 1968, escrito pelo romancista americano Philip K. Dick e lançado pelo selo Doubleday, o romance “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” se passa em uma cidade de São Francisco pós-apocalíptica onde, no passado, a vida na Terra foi quase devastada por uma guerra nuclear mundial, deixando a grande maioria das espécies de animais do planeta em quase ou total extinção.
É nesse cenário que acompanhamos Rick Deckard, um caçador de recompensas encarregado de "aposentar" (um eufemismo para ‘matar’) seis androides do modelo Nexus-6 foragidos de suas colônias de trabalho e que vieram direto para a Terra na tentativa de viver uma vida “normal”. Ao mesmo, a trama também acompanha John Isidore, um homem com QI abaixo da média e que ajuda os androides fugitivos.
Se a trama te parece muito familiar, bom, é porque ela é, de fato, uma história já bem conhecida no cinema, ou quase isso. “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” serviu de base para o filme “Blade Runner”, lançado em 1982 e estrelado por Harrison Ford e Sean Young e, de certa maneira, também para sua continuação “Blade Runner 2049”, de 2017, estrelado por Ryan Goslin. Em ambos os casos, diversos aspectos da obra original foram alterados nas adaptações.
O livro e suas aspirações
É nesse cenário de futuro pós-apocalíptico, de pós guerra nuclear, onde uma boa parcela da população humana (a parcela que tem muita grana) acaba migrando pra colônias espaciais, deixando para trás uma sociedade decadente e um planeta desolado onde a vida humana não vale muito, mas a vida animal é extremamente rara e bastante valorizada.
Em meio o dia a dia nesse mundo horripilante, acompanhamos Rick Deckard, um caçador de recompensas com a missão de aposentar seis androides fugitivos altamente avançados, que escaparam das colônias e se escondem na Terra. Para que isso possa ser feito da maneira certa, eliminado apenas os androides reais, Deckard se utiliza do teste Voigt-Kampff, para distinguir o que é máquina e o que é humano, tudo isso baseado nas respostas emocionais de cada um.
Enquanto descobre a existência de um novo modelo de androide, o Nexus-6, representado pela personagem Rachael Rosen, que é praticamente indistinguível dos humanos devido a suas memórias implantadas que os fazem acreditar serem realmente humanos. Ao mesmo tempo que tem que confrontar os androides, Deckard acaba experimentando diversas dúvidas morais e conflitos internos sobre sua missão e a natureza da empatia humana.
Entre os temas principais, fica claro a abordagem sobre o que significa ser humano quando a linha entre humanos e androides se torna turva, assim como a realidade é subjetiva e moldada por percepções e emoções. Aqui, cada um dos antagonistas androides são, de fato, mais humanos do que os próprios humanos, e de maneira intencional. Eles são um reflexo perfeito da ação humana, contrastados com uma cultura que está perdendo sua própria humanidade.
Em suma, "Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?" explora questões profundas sobre a natureza da vida, da consciência e da moralidade em um mundo altamente tecnológico, mas distópico.
Reflexões sobre sonhos e androides
De forma geral, é possível criar em uma ideia que discute como o ambiente humano, cada vez mais preenchido por máquinas, computadores e sistemas eletrônicos interligados, têm começado a adquirir características cruciais para a percepção humana, quebrando completamente a formação do ser como criatura primitiva e o retirando de seu ambiente natural.
Ou seja, é possível aqui sugerir que o ambiente construído tem cada vez mais se tornado "vivo" e que, ao invés de apenas estudarmos nossas criações tecnológicas como produtos do avanço da tecnologia, também devemos considerar o que essas criações estão fazendo para nós e como isso pode nos ajudar a entender melhor nossa própria natureza e comportamento.
Influência e inspiração
Influenciado ainda por sua pesquisa feita para a concepção do livro “O Homem do Castelo Alto” (The Man in the High Castle), de 1962, Dick passou algum tempo lendo e relendo uma série de diários apreendidos após a Segunda Guerra Mundial escritos por oficiais e agentes da Gestapo e que acabou tomando consciência das experiências traumáticas perpetradas por pessoas que cometeram crimes e violências inconcebíveis, como no Holocausto.
A partir desses relatos, e de como os agentes desprezavam a vida humana, o autor começou a pensar nas pessoas que tinham a necessidade de algum tipo de empatia apenas como "androides". Empatia essa que acabou se tornando o cerne de “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” e sobre o qual sua reflexão da vida se apoia.
Já esteticamente, e de forma bastante intencional, ainda mais óbvia nas adaptações, Dick imita muito bem o estilo noir em suas cenas. Claro, de forma bastante livre e influenciado pelos elementos de mistério, tramas policiais, detetives e investigações da literatura noir propriamente. Nesse caso, apresentando um detetive/investigador/caçador casca-grossa que precisa lidar friamente com um mundo brutal e cheio de corrupção, mas dentro do conceito sci-fi.
Outra influência de Dick, é o autor Theodore Sturgeon, escritor do livro "Mais Que Humano" (More Than Human) de 1958, uma ficção científica, mas com tons surrealistas, que trata do encontro de seis pessoas extraordinárias e com poderes estranhos que conseguem mesclar suas habilidades agindo como um organismo único e, ao mesmo tempo, em que atingem o próximo passo na evolução humana. A trama também apresenta a humanidade dividida em diferentes camadas, uma controlando a outra por meio desses seres telepáticos.
Sequências diretas do livro
Com algumas boas décadas de diferença em relação ao livro, três sequências foram lançadas levando o nome de sua adaptação cinematográfica no título, "Blade Runner", ao invés do nome original em forma de questionamento, sendo elas "Blade Runner 2: The Edge of Human", de 1995, "Blade Runner 3: Replicant Night", de 1996, e, por último, "Blade Runner 4: Eye and Talon", de 2000.
As três sequências foram produzidas de forma oficial e autorizadas pelo próprio autor muito antes de sua morte em março de 1982. Todas as três foram escritas pelo amigo pessoal de Dick, o romancista K. W. Jeter e suas tramas continuam a história de Rick Deckard ao mesmo tempo que tentam conciliar as diferenças apresentadas entre o romance e o filme.
Recepção da crítica
De maneira bem geral, a recepção da crítica especializada foi bastante favorável. Um dos pontos que mais chamou a atenção na obra, é a clara relação entre a visão distopica e poluída de Dick na hora de criar, em sua narrativa e descrição, um ambiente moderno cada vez mais artificial, mas ainda assim potencialmente consciente de sua existência, tal qual os próprios antagonistas da trama.
Outras análises também destacam que o discurso do autor soa como um alerta sobre o crescente perigo de os humanos se tornarem "mecanizados", sugerindo que os androides representam uma ameaça à redução do valor da vida, mas também oferecem a possibilidade de sua expansão ou redefinição.
Uma das críticas mais profundas acerca do romance foi a de Klaus Benesch que analisou o texto a partir de uma conexão do livro com o ensaio/conceito "estágio do espelho", de Jacques Lacan, onde argumenta que a formação e a segurança do eu dependem da construção de um Outro através da imagem, começando com um duplo visto no espelho, ao mesmo tempo que sugere que os androides desempenham uma função de duplicação semelhante à imagem refletida do eu, mas em uma escala social, não individual.
Além de diversas críticas elogiosas, o romance também chegou a ser bastante consumido entre apenas leitores e apreciadores da literatura ficcional. Por esses motivos todos, “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” chegou a concorrer a um ‘Nebula Award’ ainda em 1968, sendo premiado efetivamente em 1998 com um ‘Locus Poll Award’ na categoria “All-Time Best SF Novel Before 1990” (Melhor Romance de Ficção Científica de Todos os Tempos Antes de 1990) na 51ª posição.
As diferentes adaptações do livro
Cinema
Lançado em 1982, “Blade Runner” adapta livremente a obra de Dick para as telonas. Escrito por Hampton Fancher e David Peoples e dirigido por Ridley Scott, o enredo do filme altera diversos elementos significativos do livro, como os próprios androides, que aqui se tornam replicantes, seres biológicos geneticamente modificados e com tempo de vida limitado. Elemento esse que cria toda a motivação principal da história do longa.
E mesmo tendo sido um fracasso de bilheteria e crítica durante seu lançamento, o filme acabou arrecadando status de cult ao longo dos anos ganhando, em 2017, uma sequência direta aos acontecimentos do filme original intitulado “Blade Runner 2049”.
Rádio
Parte da série radiofônica “Dangerous Visions”, que explora abordagens contemporâneas sobre distopias futuristas, em 2014 a BBC Radio 4 transmitiu uma adaptação em duas partes de “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”.
Produzida e dirigida por Sasha Yevtushenko a partir de uma adaptação escrita por Jonathan Holloway, seus episódios foram originalmente transmitidos aos domingos nos dias 15 e 22 de junho. O elenco apresentava James Purefoy como Rick Deckard e Jessica Raine como Rachael Rosen.
Audiolivro
Lançado duas vezes em versão audiolivro, “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” teve sua primeira adaptação audiofônica lançada em 1994 e conta com Matthew Modine e Calista Flockhart. Já a segunda, foi lançada em 2007 pela Random House Audio para coincidir com o lançamento de “Blade Runner: The Final Cut” em DVD e tem narração de Scott Brick, além de uma duração de 9,5 horas.
Teatro
Entre os produtos mais inusitados criados a partir de “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”, certamente a sua adaptação teatral é a mais curiosa. Escrita por Edward Einhorn, a peça chegou a ser apresentada em 2010 no 3LD Art & Technology Center, em Nova York, e em 2013 no Sacred Fools Theater Company, em Los Angeles.
Quadrinhos
Lançada como uma série limitada em 24 edições, em 2009 o selo BOOM! Studios publica "Do Androids Dream of Electric Sheep?", do qual contém o texto completo do romance junto a ilustrações feitas pelo artista Tony Parker. O quadrinho chegou a ser indicado ao prêmio de "Melhor Série Nova" pelo Eisner Awards em 2010.
Ainda em 2010, o selo da inicio a sua publicação, em forma serializada, de uma prequela em oito edições intitulada "Dust To Dust" e escrita por Chris Roberson com ilustrações de Robert Adler, a qual se passa nos dias imediatamente após a Terceira Guerra Mundial.
Já pelo selo Titan Comics, são lançadas com o nome de Blade Runner cinco séries diferentes, "Blade Runner 2019" (2017), "Blade Runner 2029" (2020) e "Blade Runner Origins" (2021), todas lançadas em doze edições cada, "Blade Runner - Black Lotus" (2022) em quatro edições e, finalmente, "Blade Runner 2039" (2023) em volume único.
Como parte promocional de lançamento do filme, uma adaptação em quadrinhos lançada pelo selo Marvel Comics também chegou a ser publicada ainda em 1982. Escrito por Archie Goodwin e com ilustração dos artistas Al Williamson, Carlos Garzon, Dan Green e Ralph Reese, a graphic saiu pela série Marvel Super Special 22 intitulada "Blade Runner (The Official Comics Illustrated Version)".
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