Solaris (1972) de Andrei Tarkovsky
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Por Felipe Leonel
O que acontece quando um cineasta que valoriza e vislumbra ideias do cinema natural decide escrever e dirigir uma ficção científica? Notório por suas declarações de desgosto ao gênero sci-fi, Andrei Tarkovsky conseguiu criar no início dos anos 1970 um dos maiores clássicos da ficção científica enquanto combinava elementos filosóficos, psicológicos e existenciais e ainda explorava uma série de diferentes temas, como a memória, amor, culpa e os limites da compreensão humana.
“Solaris” (Solyaris/Солярис, 1972) é, sem sombra de dúvidas, uma obra-prima do cinema soviético e adaptado do romance homônimo escrito pelo autor polonês Stanisław Lem em 1961, o longa consegue ser diferente de diversas outras obras do gênero que se concentram muito mais nos avanços da tecnologia e nos aspectos externos do espaço/cosmo.
Entre outras de suas particularidades, e boa parte delas nem mesmo fazem parte do livro, “Solaris” é profundamente introspectivo, focado nas emoções dos personagens e nos dilemas éticos de cada um, enquanto apresenta todos os elementos que são parte essencial da trama e deixando uma boa parcela de seus elementos um completo mistério. Tarkovsky desafia aqui a abordagem mais científica do material original e enfatiza a espiritualidade e o drama humano.

Sobre as cores e as projeções das memórias
Enviado à estação espacial “Solaris”, que orbita e monitora um misterioso planeta coberto por um vasto oceano de cores, o psicólogo Kris Kelvin precisa descobrir o que aconteceu com a estação e o porquê de seus tripulantes terem cortado contato com a Terra ao mesmo tempo que enfrenta fenômenos inexplicáveis, causados pela interação entre o planeta e as mentes de cada um dos membros da equipe.
Ao longo de sua investigação, Kelvin descobre que o oceano consegue materializar as memórias mais profundas e dolorosas das pessoas. No caso de Kelvin, sua falecida esposa, Hari, aparece na estação, trazendo à tona sentimentos de culpa e arrependimento. Enquanto o psicólogo precisa lidar com a projeção de sua esposa e enfrentar suas próprias falhas, acaba também questionando a capacidade humana de compreender o desconhecido, especialmente quando a consciência alienígena de Solaris é tão diferente da humana.
Solaris é um filme que abre espaço para uma série de discussões, já que não oferece respostas definitivas sobre a natureza do planeta ou das recriações, se concentrando especificamente na jornada emocional e espiritual do protagonista. Tarkovsky deixa o final em aberto propositadamente, permitindo interpretações sobre o destino de Kelvin e o significado de sua permanência na estação.

Apesar de ser um filme soviético, filmado cerca de um ano antes de seu lançamento, Solaris teve um orçamento relativamente alto para a época, o que permitiu a criação de sets bem detalhados e efeitos visuais bastante impressionantes. Além disso, o uso característicos de planos longos e enquadramentos cuidadosamente compostos de Tarkovsky trouxe ao filme um ritmo meditativo e contemplativo.
Outra característica que chama atenção, é a sua trilha sonora minimalista composta por Eduard Artemyev, com o uso de um dos prelúdios de Bach, o que contribui muito para dar o tom introspectivo que a trama apresenta .
E mesmo com algumas críticas iniciais apontando seu ritmo lento, falta de maiores explicações e longos takes em silêncio, Solaris chegou a ser amplamente aclamado como um clássico da ficção científica ao longo dos anos. Até mesmo o circuito fechado em que foi projetado, saindo da União Soviética anos depois de seu lançamento, teve ótima aceitação em outros países, se tornando um marco do cinema mundial.

Entre o papel e a película
Solaris livro e Solaris filme não são tão diferentes assim em questão de trama. A história em si é a mesma para ambas as mídias, com os mesmos personagens seguindo uma mesma espinha dorsal no que se refere aos acontecimentos. Mas ainda assim, a abordagem e a narrativa entre as duas é algo que se difere absurdamente, com cada uma delas apresentando visões e significados muito diferentes
As diferenças entre livro e filme dirigido se refletem bastante no que cada um dos autores pretende com a sua história, com as prioridades artísticas e filosóficas de cada criador se distanciando e se diferenciando muito claramente.
Como foco temático, o romance enfatiza a impossibilidade de compreender uma inteligência alienígena genuinamente diferente da humana. O oceano de Solaris é um organismo autoconsciente, mas seus motivos, ações e pensamentos estão completamente além da compreensão humana, colocando o centro da obra em conceitos científicos sobre a exploração do desconhecido.

Já no longa, Tarkovsky desloca o foco para o drama humano e para o emocional, explorando temas como amor, culpa, memória e redenção e inserindo todas essas ideias na interação dos protagonistas como parte central de sua história, transformando a narrativa em uma meditação sobre os relacionamentos humanos e o impacto do passado.
Esses elementos são bastante perceptíveis em como é feita a caracterização do oceano de Solaris. Descrito no livro em termos científicos e detalhados, com longas passagens sobre as pesquisas conduzidas pelos humanos. O oceano é retratado como uma entidade que cria "fenômenos" complexos, como estruturas que desafiam as leis da física ao mesmo tempo em que a natureza do oceano é um enigma que permanece sem solução, sublinhando o tema da incomunicabilidade entre espécies.
Tarkovsky simplifica toda essa representação, que no filme aparece como um pano de fundo misterioso e sem o mesmo nível de detalhamento sobre sua fisiologia ou comportamento. O oceano serve muito mais como um catalisador para os dilemas emocionais e existenciais dos personagens do que como foco do protagonista.

Outra das maiores diferenças entre as obras é a representação dos "convidados" – que as materializações das memórias dos tripulantes da estação criadas pelo oceano – que no livro são discutidos com certa ênfase e também aparecem mais numerosos explicando como surgem para cada membro. No longa, o diretor apenas pontua cada um deles como personagens que trazem desconforto e estranheza até o ponto em que se tornam parte daquele lugar.
Em ambos os casos, Hari é a materialização de Kelvin, mas que em um é algo com que o psicólogo precisa lidar, mas de forma fria, e no outro um símbolo do amor perdido e da culpa do relacionamento. Um dos pontos chave entre as duas obras são seus finais, com o final do romance sendo bastante ambíguo nas decisões de Kelvin e do filme, reforçando os temas de ilusão, memória e aceitação.
Após o lançamento, Lem teceu algumas criticou dura a adaptação, sentindo que o diretor acabou desviando demais de suas intenções originais e considerava que Tarkovsky transformou o filme em um melodrama sobre relações humanas, enquanto o escritor pensava em uma história sobre o confronto com o desconhecido e os limites da ciência.

A resposta soviética a um clássico sci-fi americano
É sabido que o longa de Tarkovsky foi uma resposta ao material americano escrito e dirigido por Stanley Kubrick, utilizando as mesmas ideias de produção para a criação desse longa, como adaptar um livro já conhecido no gênero, alterar suas perspectivas originais para abranger uma ideia mais pessoal do diretor e também criar uma obra que oferecesse uma perspectiva filosófica diferente deixando o público brincar com as possibilidades dos significados.
Frequentemente comparados um ao outro devido à sua abordagem introspectiva, “Solaris” e “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), são ficções científicas que transcendem e redefinem as narrativas tradicionais do gênero, usando o espaço como palco para explorar questões existenciais, mas que diferem significativamente em suas temáticas, estilos e até mesmo em suas prioridades narrativas.
Em 2001, a incompreensibilidade do desconhecido é representada pelo monólito, um artefato que transcende a compreensão humana e simboliza o contato com uma inteligência superior. Já em Solaris, o representando disso é o oceano do planeta ao qual a estação orbita, um organismo alienígena vivo cuja natureza desafia os conceitos humanos de vida, inteligência e comunicação.

A exploração filosófica também é um tema explorado de forma diferente. Em 2001 é investigada a evolução humana através do papel da tecnologia e da transcendência da humanidade rumo a uma nova forma de existência, sendo Solaris mais introspectivo nesse aspecto, centrando sua trama nas emoções humanas, como culpa, amor e memória, enquanto também explora o confronto com o desconhecido.
Talvez as diferenças mais significativas entre os longas, a relação entre ciência e espiritualidade são as que mais se destacam aqui. Ambos os filmes sugerem que o avanço científico e a exploração do cosmos inevitavelmente levam a questões espirituais e metafísicas, mas em 2001 isso se manifesta no destino final do astronauta Dave Bowman, que transcende sua humanidade sendo que em “Solaris”, Tarkovsky foca na purificação emocional e na possibilidade de redenção, além de sugerir que o universo contém tanto mistérios científicos quanto verdades espirituais.
Todos esses temas tornam “Solaris” uma obra-prima que vai além de seu rótulo de ficção científica, explorando profundamente a condição humana. Tarkovsky usa o espaço como um cenário para discutir questões universais e atemporais, permitindo interpretações diversas e enriquecedoras.

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