El Topo (1970)

Por Felipe Leonel
Alejandro Jodorowsky é de longe um dos artistas mais prolíficos de sua geração, isso ainda considerando seus 95 anos de idade. Seus trabalhos perpassam uma série de diferentes mídias, como teatro, cinema, literatura e até mesmo quadrinhos, tudo isso espalhado pelos mais diferentes projetos e que percorrem uma carreira de mais de 70 anos.
O diretor é certamente uma das mentes que mais oferece obras totalmente fora da caixinha, cada uma delas cheia de filosofia, poesia, autoconsciência, violência, espiritualidade, humor negro e, o sempre presente, surrealismo. No cinema, essas temáticas podem ser vistas em obras como “A Montanha Sagrada” (1973), “Santa Sangre” (1989), “Tusk” (1980), "A Dança da Realidade" (2013) e "Poesia Sem Fim" (2016), além de mais um bom tanto de trabalhos feitos direto para outras mídias.
Ainda falando de cinema, possivelmente o trabalho que mais impressiona e salta aos olhos na estranheza e admiração, certamente é o primeiro grande trabalho de do autor para as telas grandes. Claro que me refiro a "El Topo" (1970), um filme que desafia as convenções narrativas tradicionais e deixa um espaço enorme para múltiplas interpretações e reflexões.

Com suas imagens vívidas e sua exploração profunda de temas filosóficos e espirituais, que segue um fluxo narrativo completamente não linear, “El Topo” também é absurdamente rico em simbolismos e metáforas sobre questões existenciais e espirituais da condição humana.
Além disso, o longa também apresenta uma estética muito particular e uma das mudanças de gênero mais drásticas desde “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), onde cada uma das duas partes reflete a jornada espiritual e narrativa complexa do personagem principal. Claro, tudo isso é fabricado de forma hábil no roteiro e de uma maneira em que tudo ali soa extremamente impressionante e simbolicamente denso.
Mas vamos com mais calma nessa coisa toda. Aqui vale falar mais sobre a trama em si para, só depois, cair de cabeça nos conceitos principais que sustentam todo o enredo de “El Topo”. Vale também pontuar que, toda a ideia narrativa e os conceitos estéticos, tanto visual quanto narrativo, são apresentados em dois momentos distintos do longa, muito bem separados e que se mesclam naturalmente ao ponto que a história se encaminha para seu desfecho.

Parte Um: o western surrealista
Bastante influenciado pelo western italiano (ou western spaghetti), toda a primeira parte de "El Topo" é fortemente marcada por elementos de violência, duelos de pistoleiros e paisagens áridas. É aqui que conhecemos El Topo, interpretado pelo próprio Alejandro Jodorowsky, e seu filho de oito anos Hijo, interpretado por Brontis Jodorowsky, filho do diretor.
Durante sua peregrinação, os dois encontram uma cidade devastada habitada por alguns bandidos e monges. Ali, El Topo é desafiado pelos homens armados, aos quais são derrotados pelo pistoleiro em um duelo mortal. É nesse lugar que El Topo abandona seu filho sob os cuidados dos monges enquanto foge dali com uma ex-escravizada, Marah, em busca de seu grande desejo, derrotar os quatro grandes mestres de armas do deserto.
Um a um, El Topo vai de encontro a eles, sendo cada mestre a representação de uma religião ou filosofia específica. Ao derrotá-los, não por sua habilidade superior, mas por trapaça ou sorte, El Topo aprende uma nova habilidade que não despertará até que ele descubra a sua verdadeira vontade.
Após o primeiro duelo, ambos Pistoleiro e Marah se deparam com uma mulher vestida de preto e com voz masculina, que os guia aos outros mestres de armas. Conforme mata cada um deles, o pistoleiro começa a ter dúvidas sobre sua missão, sendo persuadido por Marah a continuar.
Após o último confrontar o ultimo mestre, superando as expectativas de El Topo ao se matar em frente ao Pistoleiro, El Topo acaba consumido pela culpa, destruindo sua própria arma e revisita os lugares onde matou os mestres anteriores.
Nesse ponto, é traído por Marah e pela mulher sem nome que, aproveitando de sua desilusão, e agora desarmado, alvejando e, aparentemente, matando o personagem. Marah e a mulher fogem juntas deixando El Topo a mercê de sua própria sorte.

Parte Dois: iluminação e espiritualidade
A segunda parte do filme se afasta do gênero western tradicional e se volta para uma narrativa ainda mais surrealista com foco em temas espirituais. Não se encaixa facilmente em um gênero específico, mas dá pra descrever de forma bastante livre como um drama psicológico ou até mesmo um conto de redenção espiritual.
Após ser baleado e deixado para morrer no deserto, El Topo é encontrado por uma mulher anã que o resgata e o leva para uma caverna onde um grupo de pessoas com deficiências físicas e excluídas vivem. Lá, El Topo desperta de um longo sono enquanto encontra na mulher anã o despertar para um novo homem, renascido espiritualmente. O agora santo El Topo passa por uma jornada espiritual e de autodescoberta, buscando compreender o significado de suas ações passadas e sua própria existência.
El Topo então decide ajudar os excluídos a escapar, conseguindo alcançar a saída e, junto a mulher, agora sua esposa e grávida, resolvem se apresentar para os moradores conservadores e imorais da cidade vizinha para arrecadar dinheiro para comprar dinamites, que irá ajudar a abrir um túnel ao lado da montanha onde os excluídos estão.
Hijo, o filho de El Topo, retorna um adulto, se tornando originalmente um monge e que está na cidade para ser o novo padre dali, mas fica horrorizado com a religião que a população pratica. E apesar da grande mudança de aparência de El Topo, Hijo o reconhece o próprio pai decidindo que, a partir dali, irá matá-lo ali mesmo. Depois do encontro entre os dois e de uma discussão acirrada, Hijo concorda em esperar até que o pai tenha sucesso em libertar os excluídos.
O filme culmina em uma cena de autossacrifício e transcendência, onde El Topo acaba sendo morto, mas levando todos aqueles que jurou vingança consigo. Enquanto o massacre ocorre, sua esposa dá à luz a seu novo filho e junto a Hijo, agora um pistoleiro assumindo o lugar do pai na função, decidem ir embora do local para tentar uma nova vida.

A busca por poder, traição e descoberta espiritual
“El Topo" é profundamente influenciado pela espiritualidade oriental, especialmente pelo budismo e pelo hinduísmo. Em sua jornada de autodescoberta e busca pela iluminação espiritual, o protagonista enfrenta desafios físicos e emocionais, a princípio confrontando os grandes mestres em busca de poder e glória, mestres esses que representam diferentes filosofias de vida.
Sua jornada também reflete a busca humana pela transcendência e pelo entendimento do “eu interior”, assim como a dualidade e o conflito interno do protagonista, apresentados em suas próprias sombras e contradições. Ou seja, El Topo é apresentado como um pistoleiro violento e também como um buscador espiritual personificando essa dualidade.
Outro conceito também bastante presente é o do karma e o ciclo de morte e renascimento que El Topo passa durante seu trajeto. As ações do personagem têm consequências profundas aos que o seguem por toda sua jornada.
Durante a primeira parte, sua busca é mesquinha e de propósito egoísta, o que faz com diversas de suas ações causem quebras significativas nos personagens que encontra no caminho. Dado a suas atitudes, El Topo acaba sendo traído e morto por quem mais confiava. Posteriormente esse ciclo de sofrimento é rompido ao encontrar uma forma de redenção espiritual para si mesmo através de atitudes altruístas.
O filme também critica a violência e o fanatismo religioso através das ações dos fanáticos da cidade. A violência é retratada como uma força destrutiva que perpetua um ciclo de dor e sofrimento para quem está de fora, contrastando com a busca de El Topo por uma paz interior para ele mesmo e para o povo que agora ajuda e protege.
Em última análise, "El Topo" retrata uma busca desenfreada por poder, mas também trata da libertação pessoal e do autoconhecimento com diferentes caminhos para a realização espiritual. O protagonista passa por uma jornada de transformação pessoal em duas frentes, enfrentando desafios externos e internos para alcançar um entendimento mais profundo de si mesmo e do mundo ao seu redor.

Simbolismos, metáforas visuais e a iconografia religiosa de El Topo
Cada cena em "El Topo" é cuidadosamente construída com simbolismo visual e metáforas visuais. Desde objetos inusitados até composições de cena complexas, Jodorowsky usa o espaço cinematográfico como um canvas para explorar temas profundos e conceitos filosóficos. Esses elementos visuais são muitas vezes abertos a interpretações múltiplas, permitindo que o espectador mergulhe nas camadas de significado do filme.
O filme incorpora uma rica iconografia religiosa e mitológica, misturando elementos cristãos, budistas e hindus. Jodorowsky utiliza símbolos religiosos de maneira provocativa e simbólica, criando uma atmosfera de misticismo e espiritualidade. Esses símbolos são frequentemente reinterpretados de maneira não convencional, adicionando camadas de significado e complexidade ao filme.
Responsável pelos principais aspectos da produção do longa, Alejandro Jodorowsky produz (ao lado de Juan López Moctezuma), dirige, escreve (argumento e roteiro), ajudou na composição da trilha sonora e atua como o personagem principal. Além do próprio diretor e seu filho, Brontis, o elenco também conta com Robert John como Hijo já adulto, Mara Lorenzio como Marah e Paula Romo como A Mulher de Preto.
Considerado um dos primeiros filmes do movimento midnight movies, El Topo foi exibido em sessões noturnas durante todo o ano de 1970, ganhando espaço nas salas também nos dois anos seguintes. O longa chegou a ser bastante elogiado por diversos cineastas americanos e pelo músico John Lennon, que ajudou na sua distribuição nos EUA.
Desde, pelo menos, o início da década de 1990, Jodorowsky tem tentado fazer uma sequência de El Topo. Com grande dificuldade em arrecadar fundos para o projeto, o diretor acabou desistindo de levar sua história para a tela grande e acabou seguindo por outro caminho. Em 2016 é lançado "Hijos de El Topo" (Filhos de El Topo) como uma graphic novel trazendo o ilustrador José Ladrönn como desenhista de toda a obra.
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