Marvel Treasury Special – 2001: Uma Odisseia no Espaço (Jack Kirby)


Texto por Felipe Leonel

Uma das graphics menos faladas e comentadas em território nacional, "2001: A Space Odyssey" (1976) é parte integral do selo Marvel Treasury Special, da Marvel Comics, ilustrada por Jack Kirby (1917 – 1994, o rei dos quadrinhos, o criador de Deuses), a partir do roteiro original do filme clássico de 1968, escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke e dirigido por Kubrick. 

Diferente de muitos outros trabalhos de Kirby, a obra foi totalmente ilustrada pelo artista, mas sua arte-final ficou a cargo de Frank Giacoia e as cores foram divididas entre Kirby e Marie Severin com letramento de John Costanza. Além dos desenhos por si só, a graphic também apresenta uma série de fotografias feitas por Dave Kraft. 

A adaptação fez parte do acordo de retorno de Kirky ao selo Marvel, que à época, também chegou a desenvolver e publicar 10 números da revista do Homem-Máquina, aqui chamado originalmente de Mister Machine, fazendo parte de uma publicação mensal também batizada de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”.

Ainda que tenha sido uma febre e uma grande descoberta lisérgica entre os jovens hippies da época, a experiência de assistir ao filme não necessariamente representava ou dialogava muito bem com a juventude leitora, que era usualmente o alvo das editoras de quadrinhos naquele momento. Devido a isso, e também a grande diferença de tempo entre uma mídia e outra, oito anos para ser exato, o trabalho de Kirby chegou com certa desconfiança do público às bancas. 

Tudo isso acabou se mostrando uma preocupação bastante vã, já que a graphic acabou se tornando uma das obras mais procuradas e aclamadas quase que imediatamente. E tudo isso só foi realmente possível devido ao esforço do próprio Kirby que, ao retornar para a Marvel, exigiu em seu contrato um pacote de adaptações das mais variadas obras cinematográficas, entre elas, claro, 2001. 

A arte de Marvel Treasury Special – 2001: A Space Odyssey

Para quem já conhece e aprecia o trabalho de Kirby, imaginar que uma obra do grande diretor Stanley Kubrick pode ser adaptada ao traço de um artista tão espalhafatoso e cheio de detalhes, tanto no traço quanto nas cores, pode sim parecer algo bastante estranho e um tanto desconexo também. Isso porque, quando se comparadas as obras, estilisticamente a arte de Kirby é declaradamente o oposto da introspecção e sobriedade do diretor britânico. 

Enquanto o filme se mantém relativamente no simples e no direto quando se fala em design, com maquinários bastante clean e muitas vezes minimalistas, tons mais sóbrios e com destaque pontuais de objetos ou parte do cenários em cores vibrantes, o quadrinho segue um caminho bem diferentes e apresenta tudo com destaque bastante forte e delimitações fora do padrão, tudo com a cara de kirby. 

Por exemplo, enquanto no filme nos é apresentado um monólito todo preto e bastante discreto, mesmo que em um cenário desértico habitado por símios (no caso, por criaturas ancestrais que deram origem a raça humana), no quadrinho nos temos sim tudo isso, mas com muito mais textura, hachuras, variações de uma mesma cor e, assim que o artefato entre efetivamente em atividade, a clássicas bolhas de explosão (krankles) tão famosas de kirby são apresentadas sem medo.

Outro exemplo, enquanto no filme vislumbramos a viagem espacial observando pontilhados de estrelas brancas longínquas espalhadas por todo o plano escuro que a tela oferece, no quadrinho Kirby destila seu estilo e imaginação colando nas páginas uma materialidade pulsante e pululante, com sua multi-colorização e surrealidade absurdas e fora do comum.

A ideia geral do filme era a de criar uma lisergia latente, mas sem a necessidade de alucinógenos se aproveitando dos movimentos e cores em tela para isso, e sim, foi muito bem sucedida em sua busca. Já no quadrinho, a ideia é trazer uma nova perspectiva sensorial sem que necessariamente seja utilizada a movimentação para tal, mas sim a mistura de cores e detalhamento de traço gerando uma nova interpretação visual da própria história. 

Ainda assim, uma das marcas que mais chama atenção no filme e que consegue se fazer presente também no quadrinho, mesmo que de forma involuntária e quase que sem escolha, é a quietude da narrativa se mostra um grande aliado na hora de adentrar na história e se posicionar como observador de uma trama magnífica e gigantesca. 

Em geral, ler a adaptação em quadrinhos acaba por exigir um pouco mais do leitor e, para quem conhece ambos os autores, entender o choque de estilos que cada um oferece é extremamente necessário para que toda a compreensão e absorção da obra seja completa. Ou seja, é preciso entender e permitir que essa mudança toda de visual e narrativa seja reinventada por Kirby para que o resultado possa oferecer o mais estonteante espetáculo visual possível.

O roteiro e suas inspirações para a adaptação em quadrinho

Entrando no campo do roteiro, talvez aqui a HQ se apresente como algo um pouco mais padrão em relação ao próprio filme. O roteiro da adaptação é inspirado e consegue mesclar muito bem ambas as ideias apresentadas tanto no livro quanto no filme, mas sem se arriscar muito e seguindo à risca o que o foi mostrado nas telonas. 

Alguns dos exemplos mais claros em relação a essa diferença entre obras, são as inserções de trama feitas com a utilização de recordatórios que ajudam a explicar melhor alguns dos personagens e detalhar certas passagens. Tudo isso fica bastante evidente quando são retirados os quase 90 minutos de silêncio do filme na adaptação ou mesmo a dilatação de ideias apresentadas durante o período da pré-História e na viagem até Júpiter.

Possivelmente, o ponto mais baixo da trama seja a falta de detalhes e presença  marcante nas poucas páginas do computador principal da nave, HAL 9000, que aqui se apresenta com mínima participação e com diálogos bastante diretos para que a trama apenas avance. Outro "personagem", também de grande importância para a história como um todo, o monólito não causa o mesmo impacto que suas contrapartes literária e cinematográfica, fazendo com que funcione mesmo em suas mídias originais. 

Ainda assim, essa é sem dúvida uma excelente adaptação, até porque aqui o roteiro consegue trazer o didatismo do livro, porém sem se deixar embriagar completamente por explicar tudo o que se é possível e mantendo em aberto algumas das discussões ou representações oferecidas por Kubrick em seu roteiro. Ou seja, a adaptação consegue extrair o melhor de ambas as obras, desde o texto mais expositivo do livro até o grande silêncio e letargia visual da película.
 
No quadrinho, o leitor obrigatoriamente acaba sendo exposto por uma narrativa repleta de desvios com enxerto de diálogos que acabam indo em direções diferentes daquelas apresentadas no filme, mas também não se embrenha completamente nas explicações e justificativas para todas as ações contadas no livro. 

Essa, com certeza, acabou sendo a melhor saída em se tratando de uma adaptação que já é uma adaptação por si só. Possivelmente, Kirby não teve muita escolha se não atender narrativamente as ideias das duas obras originais em sua versão em quadrinhos. 

A obra prima do cinema contada sob a perspectiva dos quadrinhos

É difícil não admitir que o roteiro da adaptação, em comparação a sua arte, acaba sim sendo o ponto mais fraco da obra, mas também ajuda (não da melhor maneira) a elevar e potencializar as escolhas visuais de Kirby como um todo, trazendo pra essa versão uma gama muito maior de cores, sensações e sentimentos, mesmo que dispensar (em partes) a verborragia textual do livro pudesse ser uma boa saída. 

Em contraparte, Marvel Treasury Special acaba sendo uma ótima inserção ao mundo da ficção científica dentro dos quadrinhos, e de uma forma bastante natural e pé no chão, mesmo que não seja assim tão aparente. É o tipo de obra que poderia facilmente fazer parte integral do universo Marvel como um todo, o que, de certa forma, realmente aconteceu levando em conta seu spin off com o personagem Homem-Máquina sendo posteriormente introduzido entre o panteão de personagens da editora. 

Vale ressaltar mais uma vez que essa é uma obra voltada para quem já conhece o livro e o filme, pois aqui não há realmente nenhuma novidade em relação às descobertas dessa história em particular. Porém, para aqueles que tecem elogios ao filme e o consideram uma obra-prima do cinema (e não é por menos), ler a HQ pode causar certo incômodo, principalmente pela pegada de Kirby ser completamente anti estética quando comparada ao estilo de Kubrick. E não se engane, ela é sim tudo isso.  

Fugir dessa conclusão acaba sendo um erro, por isso é interessante também, principalmente como adendo e complemento do que a adaptação em quadrinhos pode oferecer, conhecer outros trabalhos da obra de Kirby, seu estilo narrativo visual e seu traço tão preponderante e característico para que consiga apreciar o resultado.

Não há como escapar dessa conclusão e é por isso que afirmei que é necessário que o leitor entenda todo o contexto e conheça uma boa parte da obra de Kirby, com seu estilo que, quando foi sedimentado, tornou-se praticamente imutável, para que Marvel Treasury Special possa ser apreciado da forma certa e com todo os prazeres que a graphic pode te oferecer. 

Baixe e leia esse quadrinho em formato CBR!

Lançada apenas nos EUA e sem nunca ter visto a luz do dias em terras nacionais, "Marvel Treasury Special – 2001: A Space Odyssey" ainda carece também de uma republicação, não somente pela obra em si ser um clássico dos quadrinhos, mas também pela lembrança e pela saudação necessária que deve ser feita a esse material, até mesmo a chance de poder ser lançada para o brasil. 

Mas, caso você tenha curiosidade e não queira esperar pela incerteza de uma leitura desse material tão excepcional, você pode baixar tanto a obra em língua original nesse link e em em tradução feita por fã nesse outro link, além de outras 12 páginas forradas de extras.. Mas se seu interesse for além, também é possível encontrar em inglês, bem aqui, os dez números do spin off contando toda a origem do personagem Homem-Máquina e de como todos os acontecimentos de 2001 influenciaram o universo Marvel.

Pôster exclusivo feito especialmente para essa postagem. Baixe, imprima e cole na sua parece!Pôster exclusivo feito especialmente para essa postagem. Clique na imagem, baixe, imprima e cole na sua parede!

Comentários

Postagens mais visitadas