Primer 2004
Por Felipe Leonel
Falando de forma bastante geral, histórias de viagem no tempo sempre chamaram a atenção do público dada ao interesse comum pelas possibilidades que esse tipo de conceito ficcional permite. Seja nos dramas, comédias ou mesmo na boa e velha ficção científica, quando se fala em viagem no tempo, tudo é possível. Em muitos dos casos, os níveis de complexidade de cada obra acabam também sendo o grande atrativo delas.
E por complexidade, me refiro a uma série de fatores narrativos, não necessariamente aprofundamento dos conceitos científicos que geram a tal da viagem através do tempo, mas sim de como certas histórias são contadas e como elas conseguem oferecer ao expectador entretenimento puro e honesto. Alguns dos exemplos disso são, “De Volta para o Futuro” (1985) ou mesmo “Feitiço do Tempo” (1993) que aplicam suas ‘ciências’ sem muita ou mesmo nenhuma explicação.
Mas, claro, sempre existe o “outro caso”, aquele filme que vai explicar todo seu conceito de forma não somente aprofundada, mas principalmente cientificamente acurada (e nem de perto essa vaga fica para “Interestelar” e, minhasarma, sai daqui com “Tenet”). Estou falando aqui de “Primer”, longa independente lançado em 2004 escrito e dirigido por um iniciante no cenário cinematográfico, Shane Carruth, que aqui também fez a edição, a trilha sonora e vários outros aspectos da produção.
“Primer” (2004) é um filme amplamente reconhecido por sua complexidade e pela abordagem inovadora da viagem no tempo, sendo um dos filmes mais comentados e debatidos do gênero, já que sua trama é conhecida por apresentar várias linhas temporais, paradoxos e dilemas éticos, todos propositalmente deixados de forma ambígua e, de certa forma, ajudando a incentivar a análise e interpretação dos espectadores por conta própria.
Enredo
O longa gira em torno de dois engenheiros, Aaron e Abe, que, enquanto trabalham em seus próprios projetos particulares no tempo livre, acabam acidentalmente criando um dispositivo que permite viagens no tempo. Inicialmente, empolgados com as possibilidades que a máquina pode oferecer, ambos decidem usá-la para viajar cerca de seis horas no passado, se aproveitando disso para manipular o mercado de ações e ganhar uns cascalhos.
À medida que continuam suas experimentações, começam a surgir efeitos colaterais tanto físicos quanto psicológicos, como sangramentos e confusão mental. A situação se complica ainda mais quando as duplicações de suas versões passadas e futuras geram paradoxos temporais, resultando em uma crescente desconfiança entre eles. Abe e Aaron tentam evitar interferir com suas próprias versões passadas, mas suas ações inevitavelmente acabam criando conflitos.
Conforme esses conflitos vão avançando, a confiança entre os dois se deteriora cada vez mais, especialmente quando Abe descobre que Aaron usou a máquina para manipular eventos de maneiras que ele não havia autorizado. Em resposta, Abe revela que criou secretamente uma "caixa de segurança" que lhe permite voltar ao ponto inicial de todas as viagens temporais, planejando desfazer qualquer evento que tenha saído do controle.
Ainda assim, e sem deixar nada muito claro, o resultado dessas tentativas se torna bastante ambíguo sugerindo que múltiplas versões de Abe e Aaron existem agora, cada uma consciente das outras. E é aqui que Carruth deixa propositalmente diversos aspectos ambiguos como forma de incentivar a análise e interpretação dos espectadores.
Ainda que pareça simples, o final do filme é bastante aberto e cheio de incertezas, efeito esse que deixa uma série de perguntas sobre as consequências de suas ações e o estado final real das várias linhas temporais criadas, enfatizando a complexidade e imprevisibilidade da manipulação do tempo.
Temas Principais
Diferente de muitos filmes de ficção científica, “Primer” não suaviza a ciência envolvida na construção de sua trama usando uma linguagem técnica e apresentando os desafios e paradoxos da viagem no tempo de maneira cientificamente rigorosa.
Nesse aspecto, é possível perceber que até mesmo a estrutura do filme se torna absurdamente complexa, tanto que muitos espectadores chegaram até mesmo a criar gráficos e diagramas para tentar entender as diferentes linhas temporais apresentadas na trama.
O filme também explora as implicações morais e éticas das viagens no tempo, mostrando como o poder pode corromper e como pequenos erros podem levar a grandes catástrofes. Isso é acentuado principalmente pela falta de explicações explícitas que fazem com que o espectador tenha que juntar as peças por si mesmo, o que levou a inúmeras teorias e discussões sobre o que realmente acontece no filme.
Carruth mencia em entrevistas que ele queria que o filme refletisse a verdadeira confusão e o caos que poderia resultar de tal tecnologia, em vez de oferecer uma narrativa linear e simplificada.
“Primer” sugere que o tempo pode ser maleável e que múltiplas realidades criadas na trama podem coexistir simultaneamente. Esse conceito se alinha com teorias filosóficas e científicas, como o multiverso, onde o tempo pode não ser uma sequência fixa de eventos, mas uma série de realidades paralelas que podem ser manipuladas e alteradas.
Outro ponto que aparece é em como a percepção da realidade pode ser subjetiva já que a medida que Abe e Aaron experimentam essas diferentes linhas temporais, suas percepções sobre o que é real começam a divergir servindo como uma reflexão sobre a ideia de que a realidade pode ser uma construção subjetiva, onde diferentes pessoas (ou versões da mesma pessoa) podem experimentar eventos de maneiras completamente diferentes.
Assim como uma discussão sobre experiência subjetiva da realidade, o longa também trata de assuntos relacionados a outras possibilidades que a viagem no tempo pode propiciar, tais como a natureza do tempo, a identidade e multiplicidade do ‘eu’, consequências morais e éticas da ciência, paranoia, questão da confiança e a busca pelo conhecimento e suas limitações, claro tudo de forma filosófica, já que nada disso aparece de forma direta.
Recepção e Impacto
Com um orçamento extremamente baixo, estimado em cerca de 7 mil dólares, a maioria das cenas foi filmada em locações reais, como garagens e escritórios que o próprio diretor tinha acesso, muitos deles usados de forma emprestada por amigos, trabalho esse mais cru de produção que chamou muito atenção do espectador e principalmente da crítica.
Além de ter comandado a direção e o roteiro do filme, Shane Carruth também atua no longa como um dos personagens principais, Aaron. Completando o elenco estão David Sullivan como Abe, Casey Gooden como Robert, Anand Upadhyaya como Phillip e Carrie Crawford como Kara.
Sua estreia ocorreu no Festival de Cinema de Sundance em 2004, onde ganhou o Grande Prêmio do Júri, sendo amplamente aclamado pelo público do festival por sua originalidade e inteligência, embora também tenha sido criticado por ser excessivamente confuso.
Já um clássico cult, sendo constantemente analisado e discutido por fãs de ficção científica e críticos, “Primer” é uma obra que intriga e desafia novos públicos todos os anos, sendo um exemplo brilhante de como uma narrativa ambiciosa pode superar as limitações de orçamento em filmes independentes.
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